Este episódio foi gravado com os estudantes do Colégio Estadual Alfredo Parodi, em Curitiba, no dia 19 de agosto de 2022.
Uma história de som e fúria
Quando O Caçador de pipas foi publicado, em 2003, o mundo ainda era influenciado pelas políticas norte-americanas anti-islâmicas patrocinadas pela chamada guerra ao terror, uma resposta bélica aos atentados de 11 de setembro de 2001. Era o começo da paranoia que reelegeu George W. Bush, como presidente dos Estados Unidos, e serviu de pretexto para inúmeras ações de guerra, como a invasão do Iraque, também em 2003. O começo dos novos século e milênio era confuso: a internet estava à espreita, mas não acessível a todos; fazer uma ligação de celular custava uma fortuna, e receber também; aqueles foram os últimos anos em que as relações aconteciam, predominantemente, cara a cara. Depois, o resto é história. Ou seria presente?
O Caçador de pipas, romance de estreia do escritor afegão Khaled Hosseini e que integra o projeto Rodas de Leitura: discussões sobre a masculinidade na Literatura, é um exercício de empatia à cultura e aos costumes muçulmanos. Contado as trajetórias difusas de dois amigos – Amir e Hassan –, que se cruzam no Afeganistão dos anos 1970, Hosseini cria uma história singular sobre lealdade e dever. Durante um campeonato de pipas, Amir, um menino sensível e inseguro – sempre tentando agradar ao pai, um homem que admira e teme –, deixa escapar a chance de proteger seu melhor amigo, Hassan, menino pobre, mas valente.
Dessa relação, que emoldura também a luta de classes, O Caçador de pipas discute a masculinidade e os elementos que a compõem. Quando Hassan é vítima de um gravíssimo ato de violência, o silêncio do companheiro passa a ecoar entre os dois e a romper, pouco a pouco, os laços que uniam os dois – e que deixam de existir quando Amir emigra para os Estados Unidos. Muitos anos mais tarde, é chegada a hora do acerto de contas e, quando Amir regressa ao Afeganistão, um lugar desconhecido e estrangeiro para ele, tenta encontrar os cacos de uma amizade quebrada.
Lições
Hosseini é corajoso ao romper com o modus operandi das histórias de turma ou de amizade. Se em Conte comigo, filme baseado em um conto de Stephen King, a lealdade entre o grupo é alicerce daqueles jovens, ou em Clube dos cinco, clássico da Sessão da tarde, são as diferenças que permitem que aqueles adolescentes percebem os seus lugares no mundo, em O Caçador de pipas, o gesto vacilante de Amir destrói a noção de pertencimento de Hassan – e também do próprio Amir. Naquele exato momento, as certezas (dos dois foram) diluídas em lágrimas e a mágoa ficou aprisionada.
O ressentimento e o arrependimento não estão escondidos em O Caçador de pipas. Hosseini deixa isso muito claro desde as primeiras linhas do livro: existe um pacto envolvendo leitor e autor, pacto que percorre todo o romance. Ainda que se saiba como tudo termina, o que, verdadeiramente, importa é a jornada construída com muita dor e lamento em um país em crise e às raias de um golpe de estado.
Não que esse seja um romance triste, porém, há uma lição importante a ser seguida e aprendida, uma moral das relações. É, mais ou menos, a mesma linha que percorre Reparação, de Ian McEwan. Assim como em O Caçador de pipas, o romance do autor britânico lida com tudo o que não é dito e com as defesas que não são feitas e cujas consequências se revelam não só devastadoras, mas também irrefreáveis.
Dias de luta
Para muitos, O Caçador de pipas é a primeira referência cultural ao Afeganistão, a mais tenra menção sem qualquer relação com os conflitos do país, administrado pelo regime totalitário e teocrático do Talibã até 2021 – quando foi instaurado o governo provisório. Depois do romance, vieram muitos outros que debatia e retratavam as questões do Oriente Médio, como O Livreiro de Cabul, Åsne Seierstad – publicado em 2002, mas que só se tornou best-seller na cola de Amir e Hassan – e Lendo Lolita em Teerã, de Azar Nafisi.
Em 2012, quando Malala Yousafzai, à época com apenas 15 anos, foi vítima de um atentado dentro de um ônibus escolar, a sua luta pelos direitos das mulheres no Paquistão tomou propões globais. Sua vida e sua história se tornaram inspiração para que outras mulheres também buscassem mais liberdade e voz. Dois anos mais tarde, Malala recebeu o Nobel da Paz.
Todas essas histórias se cruzam em uma perspectiva de luta e identidade. Nesse sentido, muito mais que as vidas dos protagonistas, Hosseini produz o retrato de um povo e de uma região. É impossível ler O Caçador de pipas sem se concentrar no contexto político e social do Oriente Médio, sobretudo afegão. “Qualquer história ambientada no Afeganistão teria como pano de fundo a guerra, a política e a perda. A situação do país era dramática. Quando meus editores leram o livro, perceberam que havia mais que uma história de dois garotos. Era uma janela para a vida no país”, disse o autor em uma entrevista, em 2013.
Como Amir, Hosseini foi morar nos Estados Unidos na iminência da chegada do Talibã ao poder. E, mesmo que esse não seja o único atravessamento entre escritor e personagem, O Caçador de pipas – adaptado para o cinema em 2007 – está longe de ser uma narrativa autobiográfica, entretanto, de alguma maneira, é quase impossível fugir das comparações. De qualquer modo, é uma história emocionante e acessível. Passados, praticamente, duas décadas de sua chegada às livrarias, as histórias de Amir e Hassan são atuais e urgentes, debatendo temas que são essenciais para o amadurecimento das novas gerações.
Pontos importantes para entender O Caçador de pipas
- A cultura islâmica;
- O regime Talibã e o Oriente Médio;
- A masculinidade nos anos 1970;
- A dicotomia ocidente x oriente;
Que tal compartilhar com a gente um pouco da sua leitura?
Saiba mais
Leia também
- Reparação, de Ian McEwean
- O Mistério da cidade-fantasma, de Marçal Aquino
- A Ilha perdida, de Maria José Dupré
- 20 mil léguas submarinas, de Jules Verne
Cinema e televisão
O Caçador de pipas (2007) – Trailer
Críticas e entrevistas
Crítica – Ler antes de morrer
Entrevista – Khaled Hosseini (selecionar legendas em português)
Literatura em voz alta
O ator Gerson Delliano interpreta por meio de uma leitura dramática um trecho selecionado da obra O Caçador de pipas, de Khaled Hosseini. O livro faz parte do projeto Rodas de leitura: discussões sobre a masculinidade na Literatura.