Este episódio foi gravado com os estudantes do Colégio Estadual Professor João Loyola, em Curitiba, no dia 02 de setembro de 2022.
Honra teu pai
Por Jonatan Silva
O Poderoso chefão é um dos raros casos em que o filme se torna mais popular e importante que o livro. Celebrando cinco décadas em 2022, o aniversário do longa-metragem é um bom gancho para (re)visitar o romance de Mario Puzo, obra que integra o projeto Rodas de Leitura: discussões sobre a masculinidade na Literatura, idealizado pela Prosa Nova e viabilizado por meio do Profice.
Puzo – que não é somente o autor do livro, mas é roteirista do filme de Coppola – ajudou a moldar o imaginário coletivo sobre a máfia. É graças a O Poderoso chefão que conhecemos alguns dos códigos dessa organização – como o peixo morto deixado na frente da casa de alguém marcado para morrer – ou tomamos consciência de que, apesar de se tratar de uma instituição criminosa, existe um código de ética a reger seus atos. O Poderoso chefão é, no mínimo, um divisor de águas na literatura e no cinema.
A história da Família Corleone é uma história de poder e perda, elementos que parecem andar em separado, mas, na verdade, são contíguos. A figura de Vito Corleone, o padrinho de muitos ítalo-americanos, é a chave para entendermos O Poderoso chefão – que no original se chama O Padrinho. Ao longo de todo o livro nos deparamos com valores que parecem antagônicos: crime e lealdade; guerra e paz; violência e ética. Don Vito, para quem os crimes são business, ou seja, negócios, é a síntese de todas essas contradições. A sua fala mansa, pausada e pensada, verbaliza o sujeito cerebral que é. Quando uma tragédia cai sobre sua cabeça, Don Corleone entende que aquilo, talvez o que de pior poderia lhe acontecer, não passa de negócios.
Todo o poder da Família Corleone, e das outras famílias que integram a máfia italiana nos Estados Unidos, não faz de Vito e seus filhos, Sonny e Michael – homens-chave do jogo do crime – e Tom, adotado por Don Corleone e alçado a advogado, pessoas livres. Ao contrário: todos estão presos em um verniz social muito fino, sustentado por propinas a policiais, juízes e toda uma cadeia de gente que pode derrubá-los. Na prática, os poderosos estão comendo nas mãos dos miúdos. Nem Constanza, a filha de Vito, está à salvo das agruras dos seus. Casada com Carlo, Connie é vítima de violência doméstica e, mesmo com seus protestos, aguenta calada, servil ao marido.
Violência e tabu
Puzo é herdeiro da literatura policial, não a clássica, de mistério e enigma, mas aquela que surgiu no começo do século XX e que transformava a violência em linguagem. Chamada de série negra, essa literatura é fruto das grandes cidades, dos colapsos sociais e das divisões de classes cindidas pelas novas estruturas. Ricos para um lado, e o resto para outro. Esse é o cenário perfeito para a eclosão de um sistema de ganância e crime, de libertinagem e agressividade. Hoje, quem sabe, esses elementos já estejam batidos, banalizados pela televisão e pelos games, entretanto, quando O Poderoso chefão foi publicado, em 1969, eram tabus que estavam apenas às vistas dos voyeurs urbanos.
Isso explica o porquê o livro não esconde a violência em eufemismos e suavizações. Tudo está às claras, como um ato terrorista ou um crime efetuado às pressas – como a cena da tentativa de assassinato de Don Vito. Como se dizia na época, o homem precisava ser durão. Puzo e Coppola, cada um em sua linguagem, souberam transformar a agressividade e a urgência em narrativa. Ambos souberam retratar homens alquebrados como sujeitos fortes e donos de si mesmos e de suas vidas. Não havia espaço para lágrimas. Michael, que começa o livro retratado como alguém sensível e à parte dos negócios da família, é lançado para dentro do turbilhão de violência. “A raiva é uma energia”, cantaria quase vinte anos mais tarde John Lyndn à frente do Public Image Ltd. Michael Corleone é a catarse dessa raiva, dessa energia, represada e, não à toa, seus gestos são ainda mais brutais que os de seu pai.
No mundo d’O Poderoso chefão não existe espaço para amadores e covardes. A masculinidade de seus personagens está atrelada a uma coragem profissional, à valentia que bate cartão diariamente no Little Italy, comunidade de Nova York formada por imigrantes italianos. Nessa mesma região, nasceu e morou Martin Scorsese, cineasta que, assim como Francis Ford Coppola, foi um dos nomes mais importantes da Nova Hollywood, movimento da sétima arte que renovou o cinema na terra do Tio Sam e contava com nomes como Spielberg, George Lucas, Woody Allen e Roman Polanski. Voltando a Scorsese, o diretor de Taxi Driver dizia que seu futuro tinha só dois caminhos: entrar para a máfia ou se tornar padre. Talvez, um milagre o tenha apresentado à terceira, e quase invisível, possibilidade.
É esse o universo que Puzo retrata e resgata. Em alguma medida, não é um ambiente muito diferente daquele registrado em obras como Cidade de Deus, de Paulo Lins, ou Capão Pecado, de Ferréz, ou mesmo dos contos de João Antônio, escritor que trouxe para a literatura brasileira os malandros paulistanos, seus merdunchos – como os chamava com carinho e ironia. Em comum, todas essas obras tratam de comunidades à margem, de gente vista com preconceito e cuja única saída é o crime.
Veja, O Poderoso chefão iniciou uma tradição que não só perdura até hoje como também alimenta a literatura, o cinema e a TV constantemente. Puzo conseguiu dar voz aos que estavam silenciados e dar olhos aos que estavam curiosos para saber o que se passava dentro de uma das organizações mais fascinantes e perigosas de todo o mundo. Pouco depois de Puzo, Gay Talese, o famoso jornalista norte-americano, iria escancarar a intimidade da máfia no livro-reportagem Honra teu pai, que mostrava os bastidores e a vida do Clã Bonanno.
Entre a ficção e a realidade existe um abismo, mas há também muitas semelhanças. Espelhando O Poderoso chefão e Honra teu pai podemos testemunhar as relações conflituosas de pessoas que tentam sobreviver contra o mal que elas mesmas ajudaram a criar e ainda alimentam. A pergunta que fica é: como passar ileso aos perigos e às tentações que batem à nossa porta? A resposta, por incrível que pareça, está na ética de Don Vito, um homem que nunca traiu a si mesmos e nem à sua família.
Pontos importantes para entender O Poderoso chefão
- O código de ética do crime organizado;
- As relações de poder dentro e fora da Família Corleone;
- As personalidades opostas de Vito, Sonny e Michael;
- O papel da mulher dentro da família;
- A relação entre masculinidade e honra;
Que tal compartilhar com a gente um pouco da sua leitura?
Saiba mais
Leia também
- Honra teu pai, de Gay Talese;
- Adeus às armas, de Ernest Hemingway;
- Cidade de Deus, de Paulo Lins;
- Capão Pecado, de Ferréz;
- 1Q84, de Haruki Murakami;
Vídeos
O Poderoso chefão (1972) – Trailer
Entrevista – Francis Ford Coppola sobre fazer o filme
Entrevista – Francis Ford Coppola sobre Marlon Brando
Entrevista – Mario Puzo (legendas e narração em espanhol)
Crítica do livro – O Poderoso chefão
Literatura en voz alta
O ator Mauro Zanatta interpreta por meio de uma leitura dramática um trecho selecionado da obra O Poderoso chefão, de Mario Puzo. O livro faz parte do projeto Rodas de leitura: discussões sobre a masculinidade na Literatura.