Este episódio foi gravado com os estudantes do Colégio Estadual Professor Victor do Amaral, em Curitiba, no dia 28 de outubro de 2022.
Medo e delírio
Por Jonatan Silva
Até que o escritor Rubem Fonseca (1925 – 2020) estreasse com Os Prisioneiros, em 1963, a literatura brasileira parecia não se concentrar realmente no drama urbano que não retratasse a classe média. Toda a marginalidade e o submundo estavam ausentes da chamada alta literatura, aquela dita relevante e recheada de prêmios. Ex-delegado, Fonseca conhecia bem os personagens que retratava. Sabia que ali, no meio de toda aquela gente esquecida e que só figurava no noticiário policial, havia matéria-prima para toda uma carreira literária e para a consolidação das cidades brasileiras não só como cenário, mas também personagens.
O escritor, que pouco a pouco se tornou um homem recluso e distante dos holofotes – como Dalton Trevisan –, seria o estopim para que outros nomes importantes da literatura brasileira pudessem narrar as trajetórias de sujeitos controversos. João Antônio (1937 – 1996) – com Leão- de-Chácara –, Marçal Aquino – e seu O Invasor –, Paulo Lins – autor de Cidade de Deus –, e Ferréz – que transformou a vida nas comunidades cariocas em sua obra-prima, Capão pecado – são alguns dos herdeiros diretos da tradição encabeçada por Fonseca, que seria também fundamental para a criação da identidade do cinema tupiniquim.
Em todos os contos de Os Prisioneiros – que integra o projeto Rodas de leitura: discussões sobre a masculinidade na literatura – existe a construção de um Rio de Janeiro passa ao largo da cidade bossa nova de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Agora, a garota de Ipanema vive no morro, já não é mais jovem burguesa cheia de sonhos e precisa pegar ônibus para ir ao trabalho. É uma dura, brutal. Quando não é a violência física que dá corpo ao conto, é um abuso psicológico – como no conto que dá título ao volume –, capaz de transformar os mais durões em meras marionetes de uma sociedade que olha somente o lucro no final do dia.
Se comparada aos livros que Rubem Fonseca escreveria na década de 1970, como Feliz ano novo e O Cobrador, Os Prisioneiros é até brando. Ainda que a brutalidade e a banalidade do mal já estivessem presentes desde o primeiro parágrafo, somente mais adiante é que a violência seria transformada em linguagem, em alto e bom som. Aqui, o escritor tateia os temas que fartão parte de todo o seu corpus literário: a marginália, os assédios em ambiente de trabalho, a submissão da mulher, a masculinidade como ideal do homem e tantos outros eixos que serão fundamentais para entender o Brasil que assumiria a faceta radical a partir de 1964, com o Golpe Militar que impingira ao país duas décadas de subserviência e ditadura.
Mundo desigual
Os homens na obra de Rubem Fonseca são caubóis urbanos, sujeitos em perpétuo conflito consigo e com a sua própria identidade. São homens à moda antiga, é verdade, mas que compartilham valores que ainda fazem sentido no século XXI. É dessa incongruência entre o sujeito e o espaço, e da impossibilidade de diálogo entre pares, que Os Prisioneiros começa a sedimentar o caminho para que se possa discutir o resultado do comportamento masculino na formação de um mundo desigual.
Como faria mais tarde em Buffo & Spallanzani e Lúcia McCartney, Os Prisioneiros explora as lacunas e as interpretações da realidade – como fica evidente nos contos “Currículo vitae”, “Natureza-pobre” e “Teoria do consumo conspícuo”. Dessas fissuras, como a que abre o livro em “Fevereiro e março” ou “O Inimigo”, que o encerra, é possível perceber que como Fonseca se transforma não somente em um denunciante do tal mundo desigual, da sociedade cheia de mazelas, mas se torna um maximizador de tudo o que sempre é varrido para debaixo do tapete.
Todos esses conflitos são frutos da modernização brasileira. A década de 1950 foi marcada pelo crescimento das cidades e pelo êxodo rural. As metrópoles se tornavam lugares apinhados de gente e cuja equação anonimato e desigualdade tinha como saldo a violência. Desses múltiplos impasses, Rubem Fonseca cria uma obra magistral e, tristemente, atual. Os dilemas que atravessam o escritor há 60 anos são os mesmos que ainda nos colocam contra a parede. Se por um lado esse aspecto renova o interesse e o público, por outra revela que pouco mudou de lá para cá.
Mesmo sem oferecer uma resposta clara, que solucione um Brasil em perpétua crise, Rubem Fonseca consegue jogar luz sobre a escuridão, explorando o inconsciente coletivo e usando como arma os nossos próprios clichês. Os Prisioneiros é, portanto, uma leitura obrigatória para quem quiser pensar o passado, o presente e o futuro do povo brasileiro.
Pontos importantes para entender Os Prisioneiros
- Realismo urbano brasileiro;
- Masculinidade e violência;
- Submissão feminina;
- Ditadura militar;
- Modernização brasileira;
Que tal compartilhar com a gente um pouco da sua leitura?
Saiba mais
Leia também
- Feliz ano novo, de Rubem Fonseca;
- Baixo esplendor, de Marçal Aquino;
- Não verás país nenhum, de Ignácio Loyola Brandrão;
- O Vampiro de Curitiba, de Dalton Trevisan;
- Malagueta, Perus e Bacanaço, de João Antônio;
Vídeos
Clube do Livro – TVeja
451 MHz Podcast – Em busca de Rubem Fonseca
Letra em cena – Como ler Rubem Fonseca
Filme: Buffo & Spallanzini (2001)
Crítica: Agosto, de Rubem Fonseca
Literatura em voz alta
O ator Gerson Delliano interpreta por meio de uma leitura dramática um trecho selecionado da obra Os Prisioneiros, de Rubem Fonseca O livro faz parte do projeto Rodas de leitura: discussões sobre a masculinidade na Literatura.