Este episódio foi gravado com os estudantes do Colégio Estadual Dom Orione, em Curitiba, no dia 12 de agosto de 2022.
A Verdade pelo avesso
Por Jonatan Silva
Como parte do projeto Rodas de Leitura: discussões sobre a masculinidade na literatura, os estudantes do Colégio Dom Orione – que participaram do debate sobre Dom Casmurro, de Machado de Assim – receberam a exibição do filme Eu não sou um homem fácil, de Eleonore Pourriat. Após a projeção, as turmas discutiram sobre os temas abordados no longa. A conversa está disponível no Prosa Nova podcast.
Leia abaixo a crítica do filme, escrita especialmente para este projeto.
Não é de hoje que o cinema francês é desafiador, contestador e subversivo. Jean-Luc Godard e François Truffaut, dois dos nomes mais importantes da sétima arte, encabeçaram a Nouvelle Vague, o movimento das décadas de 1950 e 1960 que recriou o modo de fazer cinema ao redor do globo. O legado dos dois diretores está estampado inclusive no Brasil, sobretudo, pela produção de Glauber Rocha e de outros nomes do chamado Cinema Novo. Eu não sou um homem fácil (2018), longa de Eleonore Pourriat, bem diretamente da fonte contracultural e iconoclasta dos mestres franceses. Explorando o non-sense e o extremo, como A Chinesa (1967), de Godard, ou Jules e Jim (1962), de Truffaut, Pourriat cria um filme ousado e sagaz, que coloca em xeque os valores patriarcais de nosso tempo.
A cineasta usa uma forma bastante simples para falar de algo complexo e perturbador. Damien, um alto executivo, passa a viver em um mundo matriarcal após bater a cabeça. Dominado pela escritora Alexandra, o protagonista se torna vítima de todos os assédios que ele mesmo praticava. Nesse mundo invertido, em que as mulheres não só dominam a sociedade, mas também subjugam os homens, Damien é colocado contra a parede pelos seus próprios valores. O que poderia ser um drama sci-fi, é, pelas mãos de Pourriat, uma comédia cáustica.
O tema não é novo. Truffaut em O Homem que amava as mulheres (1977) já havia explorado as relações tóxicas a partir de um tom absurdista. Claude Chabrol, um dos dínamos da Nouvelle Vague, também havia explorado as dimensões profundas da obsessão em seu drama hitchcockiano Ciúme (1994). O frescor de Eu não sou um homem fácil está na mudança do ponto de vista. Se até àquele momento eram homens discutindo o assunto, agora seria uma mulher a dar as cartas e encampar o debate, o que cria uma potência ainda maior em um assunto tão delicado e sensível.
Prazer e poder
Pourriat faz o exercício fundamental e incômodo de mostrar o que, na maioria das vezes, ninguém quer ver. Damien, um homem abusivo, é colocado cara a cara com o poder que ele mesmo exercia. O seu desconforto é notório. O deleite de Alexandra também – o ponto alto talvez seja a depilação à qual os homens são submetidos. Como se vê, prazer e poder são forças que estão lado a lado, esperando o disparador que irá reger dominado e dominador.
Tal configuração é tão presente e naturalizada que se dá para além das ligações amorosas, sentimentais e sexuais. Se o sonho do oprimido é ser opressor, não é espantoso que o coração do colonizador se torne objeto de devoção. Damien não tenta lutar para conseguir a sua “liberdade”, mas para voltar ao posto que tinha. Era um Don Juan barato, um conquistador inveterado, que chegou a manter um caso com a esposa do melhor amigo – agora também transformado em um “homem belo, recatado e do lar”.
Eu não sou um homem fácil usa os estereótipos de gênero a seu favor. Os clichês estão postos para reforçar o ideal masculino de preservação do ambiente de caça. Nesse quebra-cabeça narrativo, Eleonore Pourriat cria uma comédia naõ só engraçada, mas inversamente verdadeira, que propõe uma reflexão dura sobre o mundo que temos e a sociedade que realmente queremos para as próximas gerações.
Saiba mais
Podcast
Trailer – Eu não sou um homem fácil (2018)