“Dalton diz: “Nasci em junho” e fica calado quanto ao dia, nem mesmo quando os amigos lhe indagaram se não estava fazendo aniversário, pois estamos em junho. Dalton Trevisan, de óculos, gravata, tomando “whisky and soda”, responde às vezes com bastante alegria às perguntas, sempre de maneira um pouco satírica, demonstrando simpatia. Quando não fala, permanece sério e meditando.”
Entrevista a Jorge Narosniak, no jornal Diário do Paraná, em 27 de junho de 1969.“O escritor é uma pessoa que não merece nenhuma confiança. Um amigo chega e me conta as maiores dores; eu escuto com atenção, mas estou é recolhendo material para mais um conto. E eu sei disso na hora. Surge então a má consciência. Sei que estou fazendo assim e não desejaria fazer, mas não há outro jeito. O escritor é um ser maldito.”
Depoimento de Dalton Trevisan a Luiz Vilela, publicado no Jornal da Tarde de São Paulo, em 6 de julho de 1968.
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O agora eterno Silêncio do Vampiro
por Luiz Andrioli
diretor de conteúdo e negócios do Grupo Prosa Nova
Meu primeiro contato com a obra de Dalton Trevisan foi ainda nos anos 1980 com o texto Uma Vela para Dario, que estava em algum material didático ou trabalho escolar daquela pré-adolescente que fui em uma escola de freiras. Dentro desse campo difuso que é a nossa memória, lembro de naqueles anos, ao comparecer a uma missa de sétimo dia com minha família, de ver o atropelamento de um homem em frente à igreja da Praça Rui Barbosa, no centro de Curitiba. O corpo do homem voou pela rua, passando muito perto do nosso carro. Enquanto os adultos tentavam me proteger daquele cenário de tragédia, reforçado pela perda de uma avó há poucos dias, de alguma maneira eu sentia já ter lidado com aqueles sentimentos de perda e melancolia, algo que o conto de Dalton havia me apresentado.
Era a Literatura começando a formar base na minha vida.
Na minha adolescência, por volta dos 14 anos, comecei a me interessar mais por Literatura e, na sequência, entrei em um grupo de teatro. Tinha alguns amigos que eram leitores de boa literatura e, possivelmente, naqueles anos — a memória me falha um pouco — O Vampiro de Curitiba deve ter sido adotado em algum vestibular, possivelmente na Universidade Federal do Paraná. Li e fiquei muito impressionado com a saga do Nelsinho, porque aquilo falava também de uma Curitiba que eu começava a conhecer, andando mais pela cidade, com alguma independência, saindo do meu bairro, de Santa Felicidade, conhecendo um pouco mais do centro e de sua fauna urbana.
Percebia em Nelsinho um vampiro heroico e complexo, que falava de amor, que era falido, ao mesmo tempo que era caçador e caçado também. E aquilo dizia muito respeito à minha adolescência: estar em busca de amor(es) e, ao mesmo tempo, também ser vítima de toda a sorte de amores possíveis e imaginados.
Fui com o vampiro foi ao teatro
Lembro do espetáculo O Vampiro e a Polaquinha, que ficou muitos anos em cartaz no Teatro Novelas Curitibanas nos anos 1990. Eu pude assistir muitas e muitas vezes, por vários motivos, porque eu também fazia teatro na época, frequentava muito o espaço e tinha um afeto pelos atores, alguns já falecidos. A direção foi do Ademar Guerra, figura importante no cenário nacional que havia dirigido o Mistérios de Curitiba, com textos do contista, em anos anteriores.
Na plateia, no decorrer daqueles anos, pude tomar contato com o texto dele, levado para a cena, respeitado fielmente. Dalton Trevisan era um autor que não permitia cortes, improvisos ou cacos.
Revista Joaquim e uma ligação do Dalton
Entrei na faculdade de jornalismo da PUCPR em 1995. Em 1996, em uma disciplina de reportagem para televisão, fui pautado para fazer uma reportagem sobre a revista Joaquim que estava completando 50 anos. Fundada e editada por Dalton Trevisan nos anos 1940, era uma publicação literária que reunia intelectuais importantes do Brasil. Na época, pude entrevistar Euro Brandão, então reitor da universidade e também um dos colaboradores da revista.
Também entrevistei o Poty Lazarotto, que foi ilustrador da revista, amigo do Dalton e produziu várias capas de livros do contista (aliás, memoráveis). Quando eu estava entrevistando o Poty em seu atelier — que, aliás, foi uma experiência muito legal e marcante —, o Dalton Trevisan ligou para o parceiro perguntando quem era eu e o que eu estava pretendendo fazer.
Isso aconteceu porque, algumas horas antes, havia passado pela casa do Dalton. Estacionei o meu carro (lendário Del Rey Azul GL ano 1986) e conversei com alguns vizinhos sobre o escritor. Na época, muito novo, eu não sabia do incômodo que o contista tinha com jornalistas. Certamente, ele ficou sabendo da minha presença querendo entrevistá-lo. Durante a ligação, perguntou ao Poty se eu iria lá de volta, se iria incomodar ou algo assim.
Não voltei.
Ali comecei a respeitar o que duas décadas depois chamaria de O Silêncio do Vampiro em um livro.
Meu passeio com o vampiro na academia
Alguns anos depois, por volta dos meus 30 e poucos, entrei no mestrado da Universidade Federal do Paraná, no curso de Literatura, e optei por fazer uma pesquisa na área de Literatura e História a respeito da obra e das declarações — ou não declarações — do Dalton Trevisan para a imprensa. Desde os anos 1970, ele parou de falar com jornalistas. Eu procurei entender como essa ausência de fala dele repercutiu na imprensa.
A minha visão — e ela se mantém até hoje — é que quando o Dalton deixa de falar com a imprensa, a imprensa se obriga a buscar na obra, em falas dos seus personagens ou do seu narrador (seu “eu lírico”), para preencher as lacunas das reportagens. Então, muitas vezes, cita-se Dalton, mas não o Dalton pessoa, e sim o Dalton narrador, o narrador dos seus textos ou até mesmo os seus personagens.
Sem falar nada, Dalton faz Literatura até na imprensa.
Foi um estudo interessante, com análise de várias reportagens sobre o Dalton. Pouquíssimas matérias foram baseadas em falas diretas dele; na maioria, os jornalistas buscaram trechos dos seus textos, da sua obra, para suprir essas lacunas. A dissertação teve o nome de O Silêncio do Vampiro e foi publicada também em um livro, com o mesmo título.
O livro O Silêncio do Vampiro analisa não só a fala do Dalton, mas também o silêncio — tudo o que o Dalton não falou.
No lançamento do livro O Silêncio do Vampiro, eu mandei um exemplar para o Dalton Trevisan através da sua agente literária. Tive uma resposta dele dizendo que o livro era legal, que ele gostou do texto, coisa e tal… Lacônico, no entanto, me pareceu sincero. Isso aconteceu, acredito, porque o texto, a pesquisa e a proposta respeitavam muito algo que era muito caro a ele: o silêncio.
Enquanto muita gente, principalmente jornalistas — colegas e amigos meus —, buscavam aquela foto dele andando com as sacolinhas na rua, ou fotografar o escritor por cima do muro do seu casarão, eu procurei fazer uma dissertação, desenvolver um pensamento no qual o silêncio do vampiro era estudado e respeitado. Com presente, recebi na sequência via correios alguns dos seus livros autografados, exemplares que guardo até hoje.
A imagem do vampiro apareceu na TV?
Lá pelos anos de 2009 e 2010, eu publicava crônicas em um jornal de televisão (RICTV Record no Paraná). Toda sexta-feira, eu tinha um espaço reservado para encerrar o jornal com uma crônica em vídeo. Aproveitando as minhas reflexões do mestrado na época e as fotos de um fotógrafo muito importante, chamado Nego Miranda — que refez o percurso dos personagens do Dalton Trevisan em Curitiba no livro A Eterna Solidão do Vampiro —, usei essas imagens e fiz um vídeo curto sobre nosso vampiro, principalmente sobre o seu silêncio e suas marcas em nossas vidas de leitores.
Quando o vampiro voltou atrás
Em 2014, trabalhei num projeto chamado Coleção Gazeta do Povo da Literatura Paranaense. Vale dizer que era outro momento, era outra Gazeta do Povo, um jornal impresso ainda com ideias diferentes das de hoje. A proposta era reunir seis autores para que suas obras fossem encartadas no jornal e distribuídas. E um dos autores seria o Dalton. Eu fui o curador daquele projeto.
Com os demais cinco autores, tudo avançou bem. Com o Dalton, tivemos algumas conversas intermediadas através da sua agente literária para a publicação do livro, com muitas idas e vindas. Empurramos a obra dele no cronograma, porque a resposta definitiva demorava a chegar. Ele chegou a revisar e fazer anotações em um contrato que estipulava a publicação de uma coletânea de contos. No entanto, o tempo foi passando, as cobranças firmes em cima de mim, e o autor sem nos dar os originais, tampouco sem mandar o contrato assinado em definitivo.
No final, aos 46 do segundo tempo, recebemos a resposta de que ele não iria participar da coletânea. Isso deixou a todos muito tristes, claro, porque era muito importante tê-lo no projeto. Acabamos substituindo com outro bom escritor, mas o Dalton fez falta. A justificativa que recebemos foi de que a editora (Record, então) não autorizara a publicação de contos para outra editora, mesmo que em uma coletânea, para um projeto específico.
O vampiro e a masculindade
Em 2022, a Prosa Nova realizou um projeto em escolas públicas de ensino médio em Curitiba. A ideia era usar personagens homens da Literatura para discutiir conceitos sobre masculindade saudável.
O projeto Rodas de leitura: discussões sobre a masculinidade na Literatura foi uma iniciativa de sensibilização dos jovens e adolescentes de escolas públicas para uma ressignificação da masculinidade e a criação de uma relação saudável entre os gêneros. Um dos livros que decidimos estudar com os jovens foi justamente O Vampiro de Curitiba
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Idas e vindas com o vampiro
Por conta da minha pesquisa, eu pude dar palestras, oficinas e participar de feiras literárias falando sobre a obra do Dalton. Quando a gente escreve sobre um autor ou um tema, isso acaba virando uma marca. Foi o que aconteceu comigo. Eu falei bastante sobre o Dalton, assim como já tinha falado, anos antes, sobre o meu livro O Circo e a Cidade, que conta a história da família circense Queirolo
Tal como no livro sobre o circo, depois de um tempo, eu parei de aceitar convites para falar sobre o Dalton. Eu sentia que tinha esgotado o tema, que não contava com mais nada a dizer sobre ele, visto que não estava mais pesquisando o tema com seriedade. Também deixei de acompanhar as novas publicações, as reedições dos textos. Foi uma decisão minha, por uma necessidade de explorar e falar sobre outras coisas.
No último ano, no entanto, passei a acompanhar novamente, mais de perto, a produção do Dalton Trevisan quase centenário. Vi algumas movimentações editoriais, como a saída dele da Record para a Todavia, e achei isso muito interessante. Gostei de acompanhar esse momento, e como também estou em um processo de reestruturação da minha editora e de crescimento, quis entender mais.
Pedi uma conversa com a agente literária dele, Fabiane Faversani, que cuida da obra do Dalton. Isso foi há cerca de 15 dias. Fui recebido por ela e pude entender um pouco mais sobre esse novo momento da obra do contista. Entendi o cuidado dele com a reedição das obras, com a revisão dos contratos e com essa repaginação de tudo o que produziu, agora sob o olhar de novos editores.
Esse contato talvez tenha me colocado em um novo momento em relação ao Dalton Trevisan. Uma reaproximação, tanto como leitor quanto como admirador da importância dele, não só como escritor, mas também para o mercado editorial.
Neste 09 de dezembro, depois de um dia chuvoso, soube da sua passagem através de grupos de whatsapp. Como um trunfo final, o mistério sobre retirada do seu nome da lista do obituário da Prefeitura de Curitiba. Em poucas horas, os jornais divulgariam que o corpo seria cremado sem velório.
Dalton partiu como viveu, em silêncio, mas falando eternamente através da obra.
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Dalton Trevisan (1925-2024)
Dalton Trevisan, conhecido como um dos melhores contistas do Brasil, nasceu em junho de 1925, em Curitiba, Paraná. Sua casa natal, situada na Rua Emiliano Perneta, permanece como um marco histórico, representando a memória de sua tradicional família de vidraceiros.
Formado em Direito, Dalton iniciou sua trajetória literária com grande destaque ao vencer o Concurso Nacional de Contos em 1965, durante o governo de Paulo Pimentel. Nesse mesmo ano, publicou sua obra mais icônica, O Vampiro de Curitiba, que se tornou um marco na literatura brasileira, explorando a vida urbana e a complexidade emocional de seus personagens.
Além de suas contribuições literárias, Trevisan editou, ao lado de Poty Lazarotto, a revista Joaquim, que teve grande influência cultural. Ao longo de sua carreira, foi laureado com diversos prêmios, incluindo quatro Prêmios Jabuti de Literatura e o prestigiado Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras. Em 2012, foi agraciado em Portugal com o Prêmio Camões, consolidando seu reconhecimento internacional.
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