Este episódio foi gravado com os estudantes do Projeto Garoto Cidadão, em Araucária, no dia 23 de setembro de 2022.
Entre luzes e sombras
Por Jonatan Silva
Quando as cidades começaram a se tornar as metrópoles que conhecemos hoje, lá por volta de meados do século XIX, a literatura também acompanhou esses avanços. Primeiro, com as narrativas realistas de Charles Dickens (1812 – 1870) e Balzac (1799 – 1850) – ainda que o realismo propriamente dito só chegaria com Gustave Flaubert (1821 – 1880) e o polêmico romance Madame Bovary – e, depois com a Edgar Allan Poe (1809 – 1849) e a literatura policial. O conto “Os Assassinatos na Rua Morgue” é o precursor desse gênero. Publicado em 1841, ou seja, quinze anos antes de Flaubert contar a história da adúltera Emma Bovary, o texto de Poe foi responsável criar não somente um novo modo de contar história – explorando crimes e seus desdobramentos –, mas também um novo tipo de leitor: o leitor de literatura policial. Poe deu vida também ao primeiro detetive, ao menos conscientemente, da literatura: Auguste Dupin, um homem inteligente, que acredita na sua lógica pessoal e nos conhecimentos científicos.
Dupin seria o estopim para que outros detetives aparecessem, dentre eles Sherlock Holmes – o mais arguto e famoso de todos – e, claro, Hercules Poirot, personagem de Agatha Christie (1890 – 1976) e um dos mais carismáticos de toda a literatura universal, além de ser a peça-chave de Cai o pano, romance que integra o projeto Rodas de leitura: discussões sobre a masculinidade na literatura. Poirot, que aparece pela primeira na obra da escritora inglesa em O Misterioso caso de Styles, publicado em 1920, é o protagonista de nada menos que 39 livros de Christie. Cai o pano é, justamente, a última aparição do detetive belga. Escrito na década de 1940, o livro só ganhou as livrarias em 1975. Esse é, portanto, a última aparição de Poirot pelas mãos da autora. Sem contar as adaptações para o cinema e teatro, o detetive seria protagonista de dois outros livros escritos por Sophie Hannah com autorização dos herdeiros da Rainha do Crime e publicados em 2014 e 2016.
Voltando a Cai o pano, o leitor que não estiver familiarizado com a obra de Agatha Christie terá uma boa amostra de todo o legado de Poirot e de sua parceria com o Capitão Hastings. Não por acaso, neste romance a dupla volta justamente à mansão em que o primeiro livro se desenvolve. Retomando temas caros ao seu público, a escritora, deliberadamente, criou uma história para homenagear Poirot, nesta história já bastante debilitado. Ao contrário de Holmes, também “assassinado” por Conan Doyle (1859 – 1930), Agatha Christie faz de seu personagem um homem que sucumbe à idade, que envelhece e morre sem nenhuma pirotecnia literária. Poirot, apesar de sua inteligência fora do comum, tem características muito mais humanizadas que seus congêneres.
Poirot e a masculinidade
Hercules Poirot é um homem do seu tempo: um cavalheiro e um gentlemean, mas também uma figura controversa. Enquanto desvenda os mistérios que caem em suas mãos, o detetive coloca as mulheres em segundo plano – algo muito típico na literatura policial, basta lembrar do esteriótipo da femme fatale. Agatha Christie radiografa, por meio de Poirot, muito da misoginia que regia a sociedade no século XX e que, de alguma forma, ainda dá as cartas no nosso mundo hoje em dia. Em alguns de seus romances mais importantes, como O Assassinato no Expresso Oriente e Morte no Nilo, as mulheres ocupam dois espectros bastante distintos: ou são de uma inocência acachapante ou de uma vilania sem medidas.
Cai o pano é um pouco diferente: Judith, a mais forte personagem feminina no livro, é independente e agressiva, porém, é submissa ao seu chefe e parece sempre esconder uma emotividade por trás da sua postura incisiva e decidida. Sem spoilers, Judith é cativante e o contraponto de Poirot: um sujeito calmo e extremamente analítico, alguém que a tudo presta atenção e calcula cada um dos seus movimentos. Tais elementos, um tanto quanto díspares se comparados ao restante da obra detetivesca da escritora, são a chave para entender Cai o pano.
Ainda que não traga nenhuma inovação de estilo ou na forma como constrói o mistério, tanto que de antemão Poirot diz saber que é o assassino, Christie estabelece trajetos narrativos por sua história que vão fazendo o leitor entrar na sua trama. Estamos enredados em saber quem é o tal X e o porquê um novo crime está para acontecer.
Como podemos perceber, Poirot e Hastings são os únicos sujeitos verdadeiramente ativos em Cai o pano, entretanto, se, seguindo a tradição de Dupin, somente aos homens cabia todo o saber da Ciência, neste livro Judith é a ruptura dessa ideia. Sem avançar em segredos da trama, ela é detentora de um conhecimento revolucionário, um saber que, não raras vezes, parecia alheio às mulheres. Cai o pano, nesse sentido, é um romance sobre emancipação e independência, mas é também a história do adeus de Poirot, um homem que deixa a sua marca no mundo e um legado para as próximas gerações.
Pontos para entender Cai o pano
- O papel da mulher na literatura policial;
- A personalidade de Judith;
- O conhecimento científico;
- As limitações de Poirot;
- A amizade entre Poirot e Hastings;
Que tal compartilhar com a gente um pouco da sua leitura?
Saiba mais
Leia também
- Um estudo em vermelho, de Conan Doyle;
- Os Assassinatos na Rua Morgue, de Edgar Allan Poe;
- O Crime de Lord Arthur Savile e outras histórias, de Oscar Wilde;
- O Assassinato no Expresso Oriente, de Agatha Christie;
- A Trilogia de Nova York, de Paul Auster;
Vídeos
Crítica: Cai o pano
Filme: Cai o pano (2013), de Hettie McDonald
Nerdologia: Agatha Christie
Literatura en voz alta
O ator Cesar Almeida interpreta por meio de uma leitura dramática um trecho selecionado da obra Cai o pano, de Agatha Christieo. O livro faz parte do projeto Rodas de leitura: discussões sobre a masculinidade na Literatura.